Antropólogos em casa: de dentro do gabinete se vai a campo
Sarah Faria Moreno (PPGAS/UFRGS)
Antropólogos em casa: de dentro do gabinete se vai a campo
Sarah Faria Moreno (PPGAS/UFRGS)
Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não para.
(Cazuza)
O gabinete da antropóloga (imagem de Boris Moreno).
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Introdução
No momento em que escrevo este texto completam-se cinco meses desde que fui a campo, em Bagé, cidade do interior do Rio Grande do Sul. Naquele tempo as pessoas ainda se abraçavam e não cobriam suas bocas e narizes com uma máscara. Foi a primeira vez que estive na região da Campanha gaúcha. Interessada em pesquisar as pragas agrícolas da região, fui à propriedade de Cora[1], a seu convite, para uma assembleia da associação de moradores da região. Seria uma boa oportunidade para conhecer e conversar com os moradores dali a fim de compreender, um pouco melhor, como os seres denominados de pragas atuavam na região e como as pessoas lidavam com as mesmas. Este texto, todavia, não tratará de minha pesquisa sobre as pragas no Rio Grande do Sul (Moreno, 2023), mas sobre o fazer antropológico em meio a uma outra praga: a pandemia de Covid-19. Voltamos, afinal, ao gabinete?
Gostaria de iniciar com uma provocação. Certa vez, ouvi de meu orientador de mestrado que “os antropólogos costumam ser meio novidadeiros mesmo”. Nesse sentido, a pandemia passou a ser um prato cheio para nós, antropólogos e antropólogas que, incessantemente queremos compreender os aspectos sociais, culturais e políticos diante desta que, quiçá, pode ser considerada a grande novidade do século. Esta seria a nossa corrida pela vacina! No entanto, indago: o que temos de tão novo até aqui? Comecemos, então, pelo que pode ser considerado o início de tudo.
A pandemia
Era um domingo à noite, 15 de março de 2020, quando recebi o e-mail da universidade decretando que todas as aulas estavam suspensas em decorrência da pandemia de Covid-19. Ninguém sabia muito bem o que se sucederia dali, era tudo muito novo e vago. Na semana que se seguiu muitas pessoas começaram a se preparar para uma espécie de apocalipse: estoques de comida e produtos de higiene, sem mencionar, é claro, o álcool em gel 70%. Muitos desses produtos passaram a faltar nas prateleiras de mercados e farmácias, ou terem sua quantidade de compra limitada por cliente. A primeira sensação de boa parte das pessoas de meu núcleo social era a de que, finalmente, teriam um tempo para si, quase como se estivessem entrando de férias – pouco tempo depois de o ano ter realmente se iniciado, isto é, após as festividades de Carnaval.
Aos poucos as pessoas iam se adaptando e se acostumando com o que passaram a chamar de “novo normal”: uso de máscaras, permanência em casa com saídas apenas para mercado e farmácia, trabalho de forma remota em domicílio (o famigerado home office), protocolos de higienização como descalçar os sapatos na porta de entrada, tirar as roupas vindas da rua e tomar banho logo em seguida, higienização dos produtos recém comprados com álcool, sabão ou água sanitária. Enfim, a única certeza naquele momento era a de que álcool 70% e sabão eram capazes e suficientes para “matar” o vírus[2]. É preciso destacar, contudo, que esse “novo normal” só era uma realidade para uma parcela da população brasileira. Inserida num contexto majoritariamente acadêmico universitário, esses protocolos pareciam ser unanimidade para mim, uma vez que todo meu núcleo social e familiar compartilhava dessas mesmas medidas e do pavor em relação ao vírus e à doença. Porém, não tardou para que começassem a aparecer notícias e reflexões, sobretudo nas redes sociais, sobre as camadas mais pobres da população. Como se fica em casa quando não se tem casa? Ou, como se lava as mãos quando não se tem, sequer, água potável e encanada? Esta era e é a realidade de muitos brasileiros. E, prontamente, surgiam notícias e mais notícias acerca das inventividades para sanar tais precarizações, como a colocação de galões de água e sabão em pontos estratégicos de circulação de pessoas nas cidades[3].
De dentro de casa, os dias passavam como se eu fosse apenas uma espectadora de tudo o que estava acontecendo lá fora. Da mesma forma que assistia a filmes, assistia aos noticiários, que pareciam seguir um mesmo padrão. Era final de março de 2020, as mortes aumentavam a cada dia na Europa, sobretudo na Itália e na Espanha[4]. As mortes diárias estavam na casa dos setecentos, oitocentos, novecentos, e isso nos chocava. Uma breve queda nesses números parecia acender uma faísca de esperança aos italianos que já acumulavam corpos em casa. O cenário de morbidez aparecia timidamente nos noticiários sob a forma da impossibilidade de se cumprir os ritos funerários. Ao mesmo tempo, as inventividades apareciam nos encerramentos destes noticiários, como uma tentativa de amenizar todo o horror mostrado anteriormente. Em poucos dias vimos amenidades como a redução dos índices de poluição das principais cidades do mundo, como foi o caso de São Paulo – SP[5], a ocupação dos espaços urbanos por animais, como muito se falou dos javalis nas ruas da Espanha[6] (Turnbull et al., 2020), as alternativas que as pessoas encontraram de interagirem a partir das sacadas de seus apartamentos, seja praticando atividades físicas ou assistindo a algum espetáculo realizado no térreo. Novidades que já pertenceram a um passado talvez esquecido – ou seria, enfim, a possibilidade renovada de vivenciar uma trova ou serenata?
Se nos primeiros dias de quarentena – como se convencionou chamar o “ficar em casa” –, como disse, as pessoas a romantizaram um tanto e a encararam como um alívio, um tempo para si, para se organizar e desfrutar desses momentos em casa, não tardou, por outro lado, para que esses dias passassem a ser caóticos. Aumento de estresse, tensões, agressões familiares. E quanto mais esses sentimentos e comportamentos se intensificavam, mais as pessoas buscavam por receitas de como lidar com tudo isso, como dar uma resposta a essa situação tão atípica que estavam vivendo. Poderia me debruçar aqui numa série de desdobramentos da quarentena nos mais variados contextos – econômico, familiar, conjugal, educacional, cultural –, todavia, interessa-me precisamente a questão da antropologia. Não apenas por ser algo que tenho vivenciado pessoalmente e acompanhado de perto por meio de uma rede, por assim dizer, de colegas antropólogos que também compartilham das mesmas questões, angústias e desafios, mas porque se faz cada vez mais necessária (mais) uma reflexão acerca de nossa área de pesquisa.
De volta ao gabinete
E agora, como vamos fazer campo? Esse era o principal questionamento por parte de meus colegas antropólogos – e meu mesmo. Que a pandemia enalteceu as sensações de incerteza e insegurança de uma maneira ampla, não é de se espantar. Theresa MacPhail (2014) trata, exatamente, da ideia de incerteza num contexto de pandemia, no caso, a pandemia de H1N1 em 2009. Aqui é importante destacar o uso estratégico que se faz dessa incerteza quando se faz ciência, especialmente essa ciência epidemiológica. MacPhail (2014) explica que a noção de incerteza, geralmente, se atrela também a uma noção de risco futuro, algo bem comum de se constatar, sobretudo quando pensamos nos estudos de biossegurança (Collier et al., 2004). Trabalhar com essas incertezas, como pontua MacPhail (2014, p.134), pode ser estratégico a fim de garantir, ou ao menos manter, uma autoridade científica, no sentido de que, ao assumir que o futuro é incerto, as chances de erro são consideravelmente reduzidas – e isso pode ser muito útil enquanto uma pandemia perdure. De fato, com a pandemia de Covid-19 estávamos – e, de certo modo, ainda estamos – habitando esse período de incertezas: como e onde surgiu o vírus, quais os sintomas da doença, quanto tempo de incubação e quanto tempo de imunidade, que outros fatores estariam atrelados à melhora ou piora da doença, entre tantos outros tópicos, são indagações que surgiram e seguem nos perseguindo. E que, mesmo que se intensifiquem as pesquisas, dificilmente teremos uma resposta concreta, absoluta, livre de incertezas, seja pelo curto período de tempo decorrido desde então, seja pela estratégia científica de que fala MacPhail (2014).
Além dessa incerteza em torno da própria pandemia e do novo coronavírus, também se enalteceram outras incertezas que já pairavam em períodos anteriores a esse da pandemia. Estou falando, precisamente, de uma crise da antropologia que, de tempos em tempos, vem à tona. Quando me refiro a uma crise da antropologia, estou me embasando, principalmente, nos escritos de Lévi-Strauss (1962) e Mauro Almeida (2004), mas gostaria de me debruçar, especialmente, sobre este último. Lévi-Strauss (1962, p. 25) chamou a atenção para o fato de que a antropologia precisaria se reinventar se quisesse prosseguir no mundo moderno; mas é Mauro Almeida (2004) quem resgata os vários momentos de crise da antropologia. Antes de qualquer coisa, precisamos ter em mente que antropologia e etnografia não são a mesma coisa, mas a etnografia está presente na antropologia. Autores como Tim Ingold (2016, 2017) tratam dessa distinção entre antropologia e etnografia, e o próprio Mauro Almeida (2004, p. 02) a faz, no início de seu artigo, destacando o fato de que a etnografia está em expansão, ao passo que a antropologia – enquanto uma teoria social que teve seu auge com o estruturalismo de Lévi-Strauss – encontra-se em crise. Nesse sentido, o que Mauro Almeida faz é recapitular como a etnografia foi se transformando ao longo das décadas e como essas transformações estiveram marcadas por cenários de guerra.
Não me interessa aqui fazer um resumo dos cenários apresentados por Mauro Almeida (2004) em seu artigo, mas atentar para o fato de que grandes momentos históricos vividos por nossa sociedade ocidental, marcados por grandes guerras, foram grandes responsáveis por mudanças em diversas esferas, e isso é bem pontuado por Frédéric Keck e colaboradores (2019, p. 03) a respeito de epidemias. Assim, nem a antropologia, nem tampouco a etnografia, ficaram de fora dessas mudanças. Nesse sentido, considerando o grande evento mundial – que já podemos assim nos referir – que foi a pandemia de Covid-19, não é de se espantar que muito em breve o modo como fazemos etnografia e, consequentemente antropologia, sofrerá – se já não tem sofrido – alterações. Falo aqui de antropologia enquanto consequência da etnografia, pois, mesmo que muitos autores insistam em diferenciá-las a todo custo, isso não tem mudado a realidade de que a etnografia é encarada como um pré-requisito para o antropólogo, isto é, para se fazer antropologia precisa-se, antes, fazer uma etnografia – seja lá o que isso signifique.
Naqueles tempos de pandemia e isolamento social, era por meio da internet que muitas coisas estavam funcionando: compras, aulas, reuniões profissionais ou sociais, prestação de serviços, inclusive atendimento médico e, claro, novamente, a etnografia. Algumas pessoas passaram a se referir a esta prática como “netnografia”, em alusão ao sufixo net (rede) de internet. Recuso-me, fortemente, em adotar tal termo por dois motivos que elencarei aqui, sendo que o primeiro deles diz respeito, justamente, a todas as mudanças pelas quais a etnografia já passou até o presente momento e, mesmo reconhecendo-se uma problemática quanto ao prefixo etno, nunca deixamos de nos referir à etnografia enquanto tal. O segundo ponto tem a ver com outra recusa, que é a de encarar a internet e seus derivados enquanto um espaço em seu sentido físico, um local em que se adentra, mas voltarei a isso na seção seguinte. Fiquemos apenas com o primeiro motivo, por ora.
Parece-me que estamos vivenciando um vício por adotar novas palavras na tentativa de sanar angústias não resolvidas. Como exemplo disso tem-se as novas noções de naturezasculturas (Haraway, 2008), ou socialidade (Ingold, 1996), ou mesmo a tentativa de se manter uma palavra conferindo-lhe outro significado – ou ampliando um significado original –, como a ideia de social em Bruno Latour (2012). Sem dúvidas essas são noções extremamente importantes, mas que surgem de uma necessidade de se deixar para trás termos passados que, por vezes, é apenas para nós, antropólogos, que deixaram de fazer sentido. Ora, estamos o tempo todo rodeados de pessoas, inclusive nossos interlocutores, fazendo menções às clássicas noções de natureza e cultura, em associação ao que é “puramente” biológico e ao que é construído pelo homem, ou ainda reconhecendo uma ideia de sociedade num sentido estritamente durkheimiano, como se convencionou a assim compreendê-la por muito tempo, e o mesmo se aplica quanto à ideia de social: ou deveríamos dizer, então, que ao invés de estarmos em isolamento social, estamos apenas deixando de fazer associações? Estaríamos desagregando o social? Isto é, quando se fala em isolamento, ou mesmo distanciamento social, a palavra social se refere a pessoas: manter-se isolado ou distante de pessoas. Por mais que alguns objetos e seres outros-que-humanos possam “carregar” o vírus por algum tempo, não é a esses que o isolamento e o distanciamento social se referem.
Nesse sentido, minha crítica aqui diz mais respeito a uma cautela a que devemos nos atentar quanto a novas nomenclaturas, tendo em vista, sobretudo, que algumas ideias antropológicas brilhantes dos últimos anos possam vir a cair por terra como resultado da pandemia. Uma destas ideias é a de se “permanecer com a encrenca” (staying with trouble) de Donna Haraway (2016), que quer dizer, de maneira muito breve, um aprendizado de como ser presente e encontrar maneiras de se viver e morrer bem neste tempo atual, sem que se recorra a pensamentos sobre o passado e o futuro, sejam eles apocalípticos ou salvíficos. Permanecer com a encrenca, em alguns casos, pode ser uma boa alternativa para lidar com alguns problemas, como sugeri em minha dissertação de mestrado a respeito dos pombos urbanos, em que compreendi que essa encrenca dizia muito respeito a uma disputa territorial (Moreno, 2019; 2024); no entanto, no caso da pandemia, parece-me muito arriscado permanecer com essa encrenca – embora pareça ser exatamente isso, como se sabe, que alguns líderes políticos estivessem fazendo na época.
O antropólogo David Gellner (2020) chama a atenção para dois pontos importantes em relação ao isolamento e ao distanciamento social, que são: primeiro, a dificuldade, senão impossibilidade, de se cumprir um distanciamento social, como o exemplo trazido pelo antropólogo a respeito da Índia, onde uma média de oito a dez pessoas usualmente compartilham de um mesmo cômodo; e, segundo, e o qual me interessa para este texto, a questão de se fazer pesquisas online que, em suas palavras,
Nós, antropólogos sociais, encaramos uma ameaça existencial quanto ao nosso método. Nós devemos aprender a fazer pesquisa online. Atividades que antes pareciam como uma procrastinação culpada podem agora ser renomeadas como netnografia, mas isso torna a divisão digital, entre aqueles online e aqueles que mal estão online ou sequer conseguem estar online, ainda mais discrepante. À medida que o lockdown retroceder será urgente que os antropólogos saiam e façam contato com aqueles excluídos digitalmente (Gellner, 2020, p. 02 – tradução minha).
Percebemos, então, que, à primeira vista, qualquer atividade realizada de forma online poderia ser considerada como etnografia, ou pesquisa online – para recusar-me a utilizar o termo netnografia. No entanto, talvez estejamos nos esquecendo de que já faz algum tempo boa parte de nossas pesquisas e etnografias são assim realizadas, e até então não tivemos a necessidade de renomear, ou diferenciar, estas novas maneiras do fazer etnográfico. Deveríamos então passar a adotar nomenclaturas específicas para cada meio que utilizamos para realizar nossas pesquisas? É deste modo que entendo que realizar pesquisas por meio da internet não é algo assim tão novo para nós, antropólogos, embora às vezes pareça que existe uma necessidade de “exotização” para trazer à tona o “estranhamento” com algo “novo”. Talvez também seja importante relembrar e ressaltar aqui o valor e a importância que o gabinete tem nesse momento. Parece que se tornou algo convencional criticar, num sentido de desaprovação, a antropologia de gabinete, como se costuma denominar aqueles antropólogos antigos que não iam a campo e realizavam suas pesquisas a partir dos dados de outros etnógrafos, ou seja, a partir dos dados de segunda mão. Ao fim e ao cabo, parece que, na prática, os antropólogos não estão tão dispostos a abrirem mão de sua autoridade etnográfica (Clifford, 2002), tendo que atribuir uma qualificação negativa àqueles que não vão a campo.
De fato, o isolamento e o distanciamento social são problemáticos e trazem consequências. Para boa parte da população, em especial os mais pobres e vulneráveis, isso sequer fez sentido, já que por vezes vários membros de uma mesma família compartilham de um único cômodo demasiado pequeno, ou precisavam continuar saindo de casa para trabalhar – afinal, não são todos os trabalhos que tiveram a opção de se transpor para o modo online ou remoto. Já para os antropólogos, o ponto a que quero chegar é o de que existem algumas contradições em relação ao isolamento social. Primeiro, conforme já explicitei acima, precisamente no conceito de social. Quando falamos em isolamento social estamos dizendo que estamos nos isolando de outras pessoas, e este passou a ser o ponto crucial de impacto em todas as nossas pesquisas. Nesse sentido, não estou tão certa de que aderimos ao social de que fala Bruno Latour (2012), que não se limita a seres humanos e que se comporta como um movimento em busca de novas associações. O que me parece, sim, é que a máxima do “estar lá” (Geertz, 2009) se viu comprometida, e ao mesmo tempo inovadora ou renovada: há uma possibilidade de estar lá sem se estar lá fisicamente ou presencialmente; é possível estar lá de forma remota a partir de seu próprio gabinete, e é disso que tratarei na seção que se segue e que levará à segunda contradição que, já a antecipo aqui, diz respeito aos contatos limitados que temos em campo.
Do gabinete se vai a campo
Jean Segata (2020) destaca algumas formas como o digital está inserido em nossas vidas, tanto antes da pandemia como agora, durante e depois dela, em que boa parte de nossas atividades se transpôs para um ambiente virtual, melhor dizendo, foram possibilitadas de se realizarem de forma remota, sem precisar estar de fato no mesmo local em que acontecem. As reflexões que o antropólogo traz em seu artigo acerca do tempo e do espaço foram o ímpeto necessário para que eu pensasse o que isso tudo tem a ver com o trabalho de campo do antropólogo. Deste modo, explicito de maneira muito breve os pontos desse artigo que me instigaram para trazer o argumento de que a internet, o digital e seus derivados, não se tratam de lugares que se acessam fisicamente, e que isso funciona mais como uma confusão ou sensação ilusória devido à velocidade com que podemos estabelecer relações sem estar nos lugares de fato.
Como bem grifa Jean Segata (2020, p. 166), houve um tempo em que falávamos em “entrar na internet”, como um lugar que pudesse ser acessado e que nos permitiria estar em tantos outros lugares quanto possível – uma janela de oportunidades, segundo o antropólogo. Essa ideia de poder acessar outros lugares sem, de fato, estar lá realmente não se inicia com a internet, e isso também é apontado por Segata ao trazer à tona reflexões acerca dos primeiros telefones móveis. O autor (2020) trata, ainda, da questão de se manter conectado durante o trajeto até o local de trabalho, ou seja, durante o deslocamento de um lugar (casa) a outro lugar (trabalho). Um executivo não precisa mais esperar chegar à empresa para adiantar tarefas, ele pode fazer isso a partir de seu telefone móvel e de uma conexão com a internet ao mesmo tempo em que se desloca: uma economia temporal (Segata, 2020). O que é mais curioso é que esse escape para as “janelas de oportunidade” está bastante autorizado dentro de um não-lugar (Augé, 2008), isto é, lugares não identitários, não históricos, que estão fadados a serem efêmeros, a constituírem apenas espaços de trânsitos e deslocamentos, tal como os meios de transporte. Aqui é um dos pontos principais em que entendo que a ilusão espacial começa. Ao se estar em um não-lugar, conectando-se pela internet com outros lugares, a sensação de se estar de fato nesses outros lugares é acentuada. Isso cria a ilusão de que a internet é um lugar propriamente dito. Mas internet é uma ideia muito ampla. Prefiro então compreender que a internet possibilita um acesso imediato, isto é, em tempo real – ou, no limite, com alguns poucos segundos de atraso – a outros lugares, ou seja, a internet não é um lugar em si. Do mesmo modo que um carro, um ônibus, um trem, um avião, um navio, dentre tantos outros meios de transporte, que possibilitam sair de um lugar e ir a outro, assim faz a internet.
É seguindo essa linha de raciocínio que argumento que fazer campo, ou fazer etnografia, na internet é uma falsa ideia, tendo em vista, novamente, que a internet não é um lugar. Na pandemia, perdemos, temporariamente, o social. Estávamos isolados – ou deveríamos estar. E como podíamos buscar tudo o que queríamos na internet, estávamos nessa busca pelo social perdido neste não-lugar que é a internet. Sem perder isso de vista, a ilusão se desfazia no momento em que nos dávamos conta de que não “estávamos lá” de fato, não fomos a campo. Por mais que podíamos contatar nossos interlocutores, a internet ainda não possibilitava, e não possibilita, a observação participante, não franqueia as sensações corpóreas, fenomenológicas, que se experimenta ao estar junto. Podemos ver e ouvir, mas ainda estamos privados dos outros sentidos. Além dessas impossibilidades, ainda perdemos o contato com aqueles interlocutores que não têm acesso à internet e não podem se comunicar conosco. Este é o caso, por exemplo, de minha principal interlocutora em Bagé, interior do Rio Grande do Sul. Além de o sinal de internet ser bastante ruim e inexistente em alguns pontos no interior do estado, estou falando ainda de um contexto rural, onde o único acesso possível à internet se dá por meio de um plano de dados telefônico e que só é possível conseguir conexão em um lugar muito específico em um dos cômodos de sua casa. Vale destacar, também, que é apenas o sinal de uma única operadora de telefonia que consegue ser ali captado[7]. Como, então, fazer campo diante dessas impossibilidades?
Não proponho uma solução a respeito do fazer campo, mas talvez ampliar os horizontes para pensarmos a pesquisa de campo com um olhar menos desesperador diante de eventos como a pandemia da Covid-19. O fato de termos, naqueles tempos, perdido o social era realmente preocupante quando o que desejávamos fazer era uma ciência social. Contudo, quero lembrar aqui que muitas vezes coletamos dados que não necessitam que “estejamos lá”, em campo. Estabelecemos contatos com as pessoas por meio de e-mails, telefonemas, fóruns online – e por que não correspondências, a depender das condições disponíveis. Fazemos pesquisas em acervos, a partir de documentos e notícias, ou outros registros. Se a antropologia não foi classificada como um serviço essencial, aqueles que o foram ainda estavam lá, e nós, antropólogos, ainda podíamos nos informar com eles de dentro de nossos gabinetes. Entendendo, ainda, a especificidade de cada campo e de cada pesquisador, também devemos assumir que, nesses casos, nossos contatos se restringirão aos interlocutores que têm acesso à internet, já que esse tem sido o meio de comunicação mais eficiente dentro de certas condições, ou por meio de telefonemas e outros meios de comunicação.
Com isso, também devemos assumir que haverá uma perda, sim, considerável, de informações. Todavia, quando vamos presencialmente a campo também enfrentamos limitações nos contatos, também deixamos de acessar lugares e pessoas – seja por simples recusa destes, seja por impossibilidades que nos escapam do previsto. Neste sentido, optei por compreender a pandemia – pelo menos para fins de pesquisa – como apenas mais um desses eventos imprevistos com os quais temos de lidar e contornar ao longo de nossas etnografias, como uma praga que tivemos que driblar (Moreno, 2023). Por outro lado, da mesma forma que enfrentamos limitações em campo que não tenham necessariamente correlação com grandes momentos e eventos específicos vividos – como a pandemia e guerras, por exemplo –, também enfrentamos outras limitações que podem nos impedir de ir a campo, como a falta de recursos e financiamentos, por exemplo. São nesses momentos que podemos olhar para a antropologia de gabinete enquanto uma alternativa viável, não novidadeira, de se ir a campo.
Referências citadas
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Notas
[1] Optei por utilizar pseudônimos e não detalhar a localidade a fim de preservar a identidade de meus interlocutores.
[2] Cf. https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advice-for-public.
[4] Cf. https://www.worldometers.info/coronavirus/country/italy/.
https://www.worldometers.info/coronavirus/country/spain.
[5] Cf. https://agencia.fapesp.br/videos/#5CLbFegoWiA.
[7] Quando estive lá, minha operadora telefônica era diferente da de minha interlocutora, e não consegui nenhum ponto de acesso à internet, ao que ela me contou que apenas com aquela operadora, que ela utilizava, era capaz de conseguir sinal.
Publicado em 02/07/2025.
* Sarah Moreno é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com período sanduíche na Universitat de Barcelona (UB). Possui mestrado em Antropologia Social e graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Investiga as relações entre humanos e animais em contextos rurais e urbanos no Brasil e na Catalunha (Espanha), com especial interesse nos animais que podem ser considerados pragas e gerar incômodos aos humanos – como pombos e javalis. É pesquisadora do grupo de pesquisa Humanimalia da UFSCar.
Como citar: Moreno, Sarah. 2025. Antropólogos em casa: de dentro do gabinete se vai a campo. Blog da Capivara, disponível em: https://humanimaliaufscar.net/blog-da-capivara/antropologos-em-casa.