A aldeia vai virar cidade?
Notas sobre o princípio da transformação no território Kuntanawa
Priscila Ambrósio Moreira (PPGAS/UFSCar)
A aldeia vai virar cidade?
Notas sobre o princípio da transformação no território Kuntanawa
Priscila Ambrósio Moreira (PPGAS/UFSCar)
Rio Tejo entre "a aldeia e a cidade".
(Foto aérea obtida por Davi Polari no âmbito do grupo de trabalho da FUNAI para identificação e demarcação da Terra Indígena Kuntanawa. Julho, 2025).
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Nos anos 2000 o livro Enciclopédia da Floresta – práticas e conhecimentos das populações condensava uma trajetória de pesquisas realizadas nas terras banhadas pelo rio Tejo, um dos afluentes do alto rio Juruá, sudoeste da Amazônia, Estado do Acre (Carneiro da Cunha & Almeida, 2002). Estas pesquisas foram muito apoiadas por uma família de seringueiros que se assentava no casal seu Milton e dona Mariana, que até então eram chamados de “os Milton” (Pantoja, 2008), e que passaram a se autodesignar Kuntanawa (Pantoja, 2016), povo que supostamente teria sido exterminado durante a instalação violenta dos seringais no Acre no século XIX. Trata-se de um lugar considerado (ainda hoje) como uma das regiões do planeta que mais concentra biodiversidade, com estimativas da presença de 100 a 200 espécies de árvores em apenas 1 hectare (Daly & Silveira, 2008). Conhecida como uma “zona transicional”, mistura a história de seres “acostumados” à encosta andina àqueles da planície amazônica, além das raízes nordestinas na figura dos seringueiros. Deste caldeirão, o lugar protagonizou a criação da primeira unidade de conservação do tipo reserva extrativista no Brasil (a RESEX do Alto Juruá), ao propôr que a conservação da floresta poderia ser conciliada com a vida de populações tradicionais (Almeida, 2012). Aqui destaco que o uso da palavra “tradicional” é uma questão em aberto neste contexto de mistura, assim como em tantos outros no Brasil, igualmente permeados pela lógica extrativista agroindustrial. Sendo assim, logo na abertura da Enciclopédia, os autores fazem o alerta de que conhecimento tradicional não se reduz a um inventário fixo, mas são princípios e possibilidades. Princípios, os autores do livro ainda esclarecem, são mecanismos sobre como o mundo funciona. E assim, apresentam um tal “princípio da transformação” partilhado na região, segundo o qual, uma coisa vira outra. Um exemplo é o mulateiro, uma árvore muito comum que cresce nas encostas dos rios, mas que quando cai, diz-se que o pau vira pedra, na medida em que a madeira é percolada pela água calcárea que brota de um barro muito escorregadio, onde literalmente se dança, e que chamam de salão.
O pau que vira pedra.
Foto da autora (julho/2025).
Ironicamente, este princípio da transformação emerge no contexto desafiador que se impõe aos Kuntanawa: a aldeia vai “virar” cidade? Foi este jogo de forças que me trouxe até lá. Vale mencionar que a questão “aldeia-cidade” já acontecia em outros termos nos anos 80, o que levou, ao final, na criação da referida Reserva em 1992. Porém, na sequência, a influência dos antigos patrões da borracha não desapareceu e passou a se efetuar a partir da ingerência da prefeitura municipal de Marechal Thaumaturgo no interior da Unidade de Conservação (Rezende, 2010). Esta ação veio por meio do incentivo a loteamentos e infraestruturas que atraem profissionais especializados e assalariados para o serviço público (médicos, enfermeiros, operadores do aeródromo, professores). Esta atração desde os anos 2000 tem promovido o crescimento de um aglomerado com cara de cidade, a Vila da Restauração, que já alcança 1000 habitantes, em contraste aos 180 nas aldeias kuntanawa (Brasil/DSEI, 2024). Este perfil acaba por reconfigurar o cotidiano da produção agropecuária, a qual já existia, mas de outro modo – menos intenso, uma vez que estava conjugada a outras atividades florestais. Além disso, uma crescente degradação ambiental, associada a um comércio predatório de recursos da floresta, acaba por deslegitimar o plano de uso elaborado com intensa participação da família de Seu Milton e Dona Mariana (Postigo et al., 2011). É neste panorama de transformação que surgiu o movimento étnico da família que reacende a sua ascendência indígena e com ele, o pedido de demarcação como Terra Indígena (Pantoja, 2016). Atualmente, como ambientalista do grupo de trabalho de identificação e demarcação que foi iniciado pela FUNAI em julho de 2025, tenho buscado compreender o modo pelo qual os Kuntanawa zelam pela terra, um território que corresponde a cerca de 100.000 ha que se sobrepõe à RESEX do Alto Juruá.
Territorialidade entre a aldeia e a cidade
Partindo da perspectiva de que as coisas se transformam, gostaria de tentar mostrar como a paisagem do lugar acompanha tal princípio da transformação, que por sua vez está expresso nas práticas das pessoas. A apreensão disso decorre em boa medida do nosso itinerário de pesquisa, um modo de conhecer caminhando que foi guiado por grupos de até 23 pessoas (entre 20 homens e 3 mulheres). O grupo grande nas trilhas da floresta proposto por uma das lideranças me pareceu arriscado de início, mas ao final se tornou a oportunidade, tanto para eles quanto para nós, de “colocar em cena” e misturar várias gerações da família. De saída, a mistura caracteriza a história dos Kuntanawa, aspecto que é sempre lembrado por uma das lideranças mais jovens (Haru Kuntanawa) ao nos advertir que não gosta de ser chamado de povo “originário”, justamente porque essa palavra passa uma sensação de pureza, que não parece retratar a mistura entre indígenas, brancos e negros que compõe a família. Um indício dessa história na paisagem é a presença marcante de árvores que chamam de ofê, um tipo de figueira que, ao que parece, foi trazida da África (Barros, 2011), mas que está associada a um local de morada dos antigos (a terra do ofê) no território kuntanawa. Purgante conhecido pela vó Regina que foi capturada nas correrias[1], o ofê foi adotado nos seringais para coalhar o látex e, atualmente, é mencionado como um dos principais pés de comida que, quando em fruta, atrai a caça, como jabuti, veado e anta.
Fato é que as fronteiras entre os povos indígenas e outras populações tradicionais neste contexto não são tão nítidas como as categorias jurídicas defendem, o que requer uma atenção cuidadosa, como indicou Roberto Rezende (2012) em um relatório elaborado para o ICMBio sobre os conflitos territoriais na RESEX do Alto Juruá. Sendo assim, para lidar com fronteiras porosas, convém encontrar um caminho do meio, que não assume apenas dois lados (a aldeia e a cidade); mas sim algo no rastro de uma contínua atualização disso que conhecemos por conhecimento “tradicional”. Se não for assim, haveria um descompasso entre um saber fixo (um inventário de saberes estabilizados) e a vida acontecendo, e não é isso que se passa em lugar nenhum. É justamente a vida acontecendo, as relações (sempre tão contingenciais) no cotidiano, no que a antropologia chama de transformações técnicas (Sautchuk, 2017), que parece haver rastros de um caminho do meio, mas que costumam ficar obscurecidos nas políticas institucionais ao se adotar uma preferência (não muito declarada) por espécies fixas, produtos prontos, categorias bem definidas e estabilizadas.
O exercício de mapear a paisagem
Esta tendência ao fixo e à rigidez foi, inclusive, uma dificuldade que experimentamos ao tentar desenhar no mapa a diversidade de ambientes. Os gradientes e fronteiras que tentávamos identificar tinham menos a ver com categorias abstratas bem delimitadas, como uma classificação botânica pode assumir, e mais com a experiência que se tem ao caminhar pela área. Assim, Cidoca Kuntanawa, ao me ver confusa diante do impasse do mapa em branco, resumiu que havia três tipos de lugares: o tabocal, a restinga e a campina. Em linhas gerais, a classificação de Cidoca indicava onde está mais fechado (cerrado, como dizem), onde está mais aberto e é bom de andar, e onde fica alagado e tem muito espinho. Esta foi a pista para compreender que a diversidade de ambientes neste caso expressava as experiências do trânsito das pessoas e outros animais pelo território. Ao final, me dei conta de que aqueles traços no mapa contavam justamente a experiência sensorial do caminhar. Esta é uma conclusão que o olhar aéreo feito pelo drone ou satélite não daria conta e, quando muito, poderia assumir uma homogeneidade (“um mar verde”) como vimos nos “fundos” da área, também chamado o centro da terra como se dizia no tempo dos seringais – e que circunscreve o entorno da área onde hoje estão as moradas permanentes.
Com estes traços delineados, pudemos perguntar o que havia nestes ambientes. Assim, identificamos a abundância ou a ausência de certos marcadores do uso. No centro do território estão as campinas, área de difícil acesso com espinhos e que fica alagada. Nas restingas e tabocais são encontradas manchas com predominância de cocão, palmeira singular da região (Attalea tessmannii) que produz óleo muito apreciado e está na origem da palavra kunta nas línguas Pano; junto a jarinais, bacabais, patauazais, os coincidem com a localização da terra do ofê. Em algumas poucas áreas as seringueiras não são encontradas e por isso não foram estabelecidos seringais. Estes locais atualmente são descritos como refúgio de animais, dado o relato de visitas recorrentes dos bandos de porcos queixadas. Todo o resto (com exceção da parte central que alaga) é pontilhada de antigas moradas do tempo dos seringais.
Cada rio um seringal
O tempo dos seringais está posto na paisagem. Cada rio foi ocupado como seringal, o qual era administrado por um certo patrão. Para uma ideia da dimensão espacial deste sistema produtivo, o seringal que o antropólogo Mauro Almeida descreveu[2] abrangia 22.000 hectares e era composto de 26 colocações (ou seja, 26 núcleos familiares), sendo que cada um destes núcleos se sustentava e zelava por cerca de 900 hectares (Almeida, 2012). Durante a vida nos seringais houve, entre os mais velhos (hoje com 50 a 90 anos), uma profunda troca de conhecimentos entre os núcleos familiares, que é relembrada com certa nostalgia. As famílias faziam visitas entre si nas épocas de festejos juninos, religiosos, aniversários e casamentos; e no geral havia um respeito aos caminhos de quem fundou (ou abriu) cada estrada de seringa. A extração do leite da seringa só era interrompida no verão, quando as seringueiras perdem as folhas[3]. Quando as chuvas voltam, época mais fresca e úmida, as seringueiras começam a brotar folha novamente e produzir o leite que vem descendo por dentro do tronco. No verão, livres do trabalho de cortar seringa, dedicavam-se ao roçado. Naquele tempo abriam roçado na várzea, na beira do rio. Aproveitavam que esta vegetação ficava seca no verão, e assim abriam a área para semear primeiro o arroz, depois a roça (macaxeiras), o milho e, após a colheita, semeavam o capim para o boi, com rebanhos que não passavam de 10 a 15 cabeças.
No ritmo dos tabocais
Hoje as colocações que não foram desmatadas ao redor da Vila da Restauração, têm sido cobertas pela sucessão florestal. Mas não estão abandonadas, “ainda existem sim”, insistia em nos dizer José Osmildo, conhecido pelo apelido Ó. Elas se cuidam sozinhas, esclareceu. Hoje os Kuntanawa caminham por estas colocações para realizar a caça a curso pelas estradas de seringa, seguindo o rastro dos animais, o que também funciona como um monitoramento que registra a entrada de pessoas estranhas que costumam abater dezenas de animais de uma só vez. Nas encruzilhadas entre as estradas são encontradas as antigas moradas, que são locais agradáveis para pernoitar. São reconhecidas na caminhada, sobretudo, pelos pés de fruta plantados (limão e abacate) que perseveram até hoje.
A dinâmica da mobilidade no território foi e é também orquestrada pela dinâmica dos tabocais, pois as estradas de leite eram abertas nestes ambientes, onde o leite da seringa era farto, pois é uma área mais “friazinha” de que a seringueira gosta. As tabocas são classificadas pela Botânica como bambus do gênero Guadua que se reproduzem tanto por sementes quanto por brotos espalhados embaixo da terra. São ancestrais milenares nesta região. Existem muitos tipos (tamanhos, coloração) e formam corredores peculiares que se movimentam pelo território: ora se expandem, ora se contraem em ritmos mais ou menos regulares que são conhecidos por todos. Assim, à medida que os tabocais crescem em altura, o ambiente vai se tornando muito cerrado, muito seco. Nesse ponto, o tabocal já maduro floresce e solta sementes em massa. Guariba, queixada, porco caititu, paca, cotia gosta do tabocal. “É ração pra eles”, explica Osmildo Kuntanawa. Após lançar sementes, e já muito alto e cerrado, o tabocal “morre”. O fechamento do tabocal inviabiliza o trânsito a pé, e assim, ele é um marcador do tempo. Esta ritmicidade do ciclo de vida-morte-vida dos tabocais é curiosa. Ao longo de cerca de 10 anos o tabocal cresce para o alto (cerca de 20-25m) e se espalha pendente até que lance sementes e seque. Em um momento propício, que demora cerca de 20 anos, uma clareira aberta, alguma ventania e queda de árvores é oportunidade para que os brotos “brolhem de novo” e o ciclo recomeça.
Tabocal em pleno crescimento.
Foto da autora (julho/2025).
O tabocal cerrado aparece nas conversas quando relembram as idas e vindas por terra entre a Vila da Restauração e a colocação Vitória, mais acima do rio Tejo, onde moravam na década de 1980. Ao revisitar a área, comentavam o estado da floresta, referindo-se à presença das tabocas: “ainda tá cipoal, não virou capoeira”, o que sugere que o fechamento do caminho pelo tabocal não é permanente. Após secar, o tabocal é pouco a pouco ocupado pela periquiteira, embaúba, ingazeira, podendo então se tornar o que chamam de restinga (um ambiente mais aberto, mais limpo para andar) ou uma capoeira com a presença de frutíferas (as chamadas frutíssimas). O fogo, contudo, é o único jeito de controlar o tabocal, diz Osmildo, pois mata de vez os brotos. Este foi o caso da área onde estão as aldeias atuais, que outrora foi o seringal onde Osmildo percorria as 14 estradas abertas pelo vô Nascimento, mas que virou tabocal seco, que em seguida foi “brocado” e queimado para abertura de roçados.
A questão “só vende aquilo que cria” retorna
Foi este modo de vida nas colocações florestais que serviu de base ao conceito de Reserva Extrativista proposto pelo movimento social dos seringueiros amazônicos na década de 1980. O que o movimento dos seringueiros defendia era o fim dos seringais, porém com a conservação do modo de vida associado às colocações (Almeida, 2012). E que, como espero tenha dado para perceber até aqui, é um jeito de viver que se conhece caminhando, no engajamento coerente ao ritmo de outros seres. Contudo, como indagou Mauro Almeida em 2012 (portanto, 10 anos após a criação da RESEX), as questões sobre como substituir o sistema patronal e reorganizar coletivamente a vida na floresta ao manter o sistema das colocações continuam a desafiar e a mobilizar atenção dos Kuntanawa.
Isso porque o engajamento com vegetais e animais tem se transformado, uma vez que as pessoas assalariadas que vivem na Vila da Restauração não têm tempo para percorrer a floresta, nem habilidade, e preferem comprar o produto “pronto” da floresta na vila. Com isso, a discussão a respeito da regra “só se pode vender aquilo que se cria”, conforme estabeleceram no plano de uso na década de 1990 (Brasil, 1995), no qual ficavam proibidas as vendas de caça, peixes e madeiras da floresta, sempre retorna. Alguns mais jovens vêm adotando o discurso de que “a mata é nosso mercado”, ainda que a compra propriamente se efetue no pequeno núcleo urbano da Restauração e dependa em boa parte dos Kuntanawa, que são caçadores e madeireiros experientes que “tem o dom da mata, sabe por onde vai e por onde vem”, como descreveu um amigo da família (citado em Rezende, 2012, p. 115). Sabem evitar a escassez, portanto. A escassez tem sido associada a práticas de caça facilitada com cachorro ou pescarias que se valem de bombas em latas de leite ou Neston que assombram os peixes para, em seguida, capturá-los com as redes de tarrafa. Além disso, os antigos gerentes de colocação criam hoje entre 100 e 1000 cabeças de gado (Pantoja et al., 2009) e desmataram para isso mais de cinco hectares, enquanto o plano de uso restringia a 1 ha por ano e com reflorestamento. Já os marceneiros de canoas “estão virando fazendeiros!” – brava Osmildo. Isso porque esta especialização tem movimentado muito dinheiro. De uma árvore de cedro se faz 20 canoas, que não são muito duradouras e as pessoas precisam trocar anualmente. Assim, cada canoa é vendida por R$1500. Ao final do mês os marceneiros tiram cerca de R$ 50.000. No entanto, o ritmo de crescimento de cada árvore de cedro é muito mais lento e leva em torno de 30 anos até assumir um porte firme para corte. O mogno, madeira mais dura, demora ainda mais.
Neste novo contexto, que parece inconciliável com a vida florestal, a borracha foi substituída por dinheiro. E por isso alguns jovens kuntanawa reconhecem que são eles que levam dinheiro (no sentido de riqueza) para a Restauração, mas também um plano de vida para todo seu povo. Plano de vida significa um jeito de viver que zela pelas antigas colocações, o que passa por realizar reflorestamentos, monitoramentos da caça e a construção de um centro intercultural que mobiliza aprendizados com madeira, feitio de medicinas e música com os jovens da região.
O feitio
Um bom feitio, expressão popular na região, não remete apenas a um inventário de boas maneiras e regras, como aquelas que foram uma vez determinadas no plano de uso, mas que agora começam a se atualizar. O feitio é uma criação coletiva entre humanos e outros seres, assim como a calma no preparo da medicina do cipó, que ao longo de uma fervura de doze horas, vai se integrando à matéria.
Os reflorestamentos, como disse a antropóloga Mariana Pantoja (2012, p. 164-168), são um exemplo deste movimento criativo de criar a partir das contingências (“a partir das formas que se tem, do sujeito que se é”), e assim se diferenciar daquilo que se coloca como alternativas inevitáveis pela gestão da Reserva. José Osmildo, por exemplo, adquiriu uma habilidade em transformar um pasto em floresta. Assim, o tabocal, que um dia virou pasto, levou 20 anos para virar o que ele chama de agrofloresta. Tal transformação só foi possível, diz ele, quando compreendeu que as bananeiras eram as ervas que melhor cuidavam da invasão do capim, reinstaurando movimento à paisagem monótona do pasto. Assim, com abundância e diversidade surpreendente de alimento e medicinas, esta agrofloresta atende a casa, os vizinhos, a escola, e produz sementes para os outros reflorestamentos.
José Osmildo Kuntanawa, conhecido pelo apelido Ó. Foto da autora (julho/2025)
Práticas e princípios se ajustam
Antes de encaminhar uma conclusão, trago ainda uma conversa com o atual cacique, Osmildo Kuntanawa, sobre a genética das galinhas, e que me parece ilustrar a centralidade do princípio da transformação que inspira o viver pelo rio Tejo.
No tempo dos seringais, Osmildo conta que, nas vésperas de festejos, havia um troca-troca de galinhas. O sujeito ficava pesquisando quantas galinhas cada um tinha e escolhia de quem iria “roubar”. Hoje em dia, contudo, é furto mesmo, diz Osmildo fazendo alusão a uma economia mais atomizada na figura do proprietário. Hoje em dia cada um consome as galinhas que consegue alimentar – ele continua. Das 150 aves que comprou, sobraram apenas seis. O prejuízo, ele atribui ao fato de que a genética das galinhas é outra. As galinhas não aceitam ração regionalizada, reclama. As galinhas carijós compradas na cidade não estão acostumadas com melancia, macaxeira, mamão...Assim, mobilizando o termo dos “técnicos”, a palavra genética é usada como uma qualidade que implica uma rigidez no jeito de viver, algo que parece oposto ao princípio da transformação. Segundo este princípio seringueiro, vira-se outra coisa a depender do que há disponível e propício (Carneiro da Cunha & Almeida, 2002, p. 12). Não se trata, portanto, de aceitar qualquer coisa, ou como fala a filósofa Isabelle Stengers (2023), não é só renunciar entre isto ou aquilo, mas sim, agir em correspondência com o que há nas circunstâncias em que se está, como bem mostram os Kuntanawa ao percorrer o território. Nada está imune às mudanças; acontece, porém, que algumas coisas resistem mais, outra menos. As galinhas carijós, por exemplo, parecem recusar mudanças e morrem. Se não resistem às mudanças, são mais resistentes a quê, então?
Osmildo, por sua vez, pesquisador de plantas medicinais, como ele se identifica, não aceita fazer mudanças e estudar as plantas em outro lugar: afinal, diz ele, as plantas estão na farmácia viva, como ele se refere à floresta no entorno de sua casa. Assim, ele se pauta no convívio diário com a espiritualidade dos vegetais. Ao ouvi-lo, ficava claro que a espiritualidade fazia referência ao comportamento de cada uma das “24.000 espécies vegetais” que ele garantia conhecer e saber usar. E que dava a entender que essa perspectiva “etológica” no modo de estudar as medicinas vegetais envolve, inclusive, atenção aos sons produzidos por elas. “A sumaúma estrala quando a água desce e as sementes se soltam lá em cima dos galhos. Você não está ouvindo?” Osmildo, assim, dá à sumaúma o que ela precisa, como ele nos explicava. Não aceita fazer mudanças porque faz e é feito pela sumaúma.
Dito todos estes causos, parece-me que eles importam, na medida em que nos ajudam a compreender concretamente isso que Stengers (2003) chamou de “pensar pelo meio”. Ao pensar pelo meio do que está acontecendo surge uma tecnologia de outra natureza, uma tecnologia relacional, que propicia um vínculo com um lugar. Práticas e princípios se ajustam. Ou, como Gabriela Schiavoni (2022) descreve a agroecologia entre agricultores argentinos, trata-se de um “código que conserva um vínculo com aquilo que codifica”. É assim, portanto, que a tecnologia em um território não é meramente mnemônica, mas é viva e atualizada ao longo de gerações e caminhos.
Referências citadas
Almeida, Mauro W.B. As colocações: forma social, sistema tecnológico, unidade de recursos naturais. Mediações, v. 17, n.1, p. 121-152. 2012.
Barros, José Flávio P. de. A floresta sagrada de Ossaim: o segredo das folhas. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2011.
Brasil. Plano de Utilização da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Brasília: IBAMA, 1995.
Brasil. Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). Plano Distrital de Saúde Indígena Alto Rio Juruá 2024-2027. Cruzeiro do Sul/Brasília: Ministério da Saúde. 2024.
Carneiro da Cunha, Manuela & Almeida, Mauro W.B. Enciclopédia da floresta - o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Daly, Douglas C. & Silveira, Marcos & colaboradores. Primeiro catálogo da flora do Acre, Brasil. Rio Branco: EDUFAC, 2008.
Pantoja, Mariana C. Os Milton. Cem anos de história nos seringais. Rio Branco: Edufac. 2008.
Pantoja, Mariana C. Navegando pelos altos rios: dilemas políticos, intelectuais e existenciais de uma antropóloga amazonista. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 8, n. 1, p. 19-40, 2016.
Pantoja, Mariana C.; Costa, Eliza L.; Postigo, Augusto. A presença do gado em reservas extrativistas: Algumas reflexões. Revista Pós Ciências Sociais. v.6, n.12, p. 115-130. 2009.
Postigo, Augusto & colaboradores (2011). Plano de Manejo Participativo da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. 124p.
Rezende, Roberto S. Das colocações à vila: processos de urbanização no Alto Rio Tejo, Acre. Dissertação de Mestrado. Antropologia Social. Campinas: IFCH/Unicamp, 2010.
Rezende, Roberto S. 2012. Relatório sobre conflitos territoriais relacionados a sobreposições de terras indígenas na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Brasília: MMA. 133p.
Sautchuk, Carlos. Técnica e transformação - perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: ABA publicações. 2017
Schiavoni, Gabriela. Agroecología o agricultura más que humana? La coordinación con las plantas como técnica agrícola. Anuário Antropológico, v. 47, n. 1, p. 150-169, 2022.
Stengers, Isabelle. Introductory notes on an ecology of practices. Cultural studies review, v. 11, n. 1, p. 183-196, 2005. (tradução em português de Camila Bevilaqua & Arthur Imbassahy, disponível em https://revistausina.com/2022/12/14/notas-introdutorias-para-uma-ecologia-das-praticas/
Stengers, Isabelle. Uma outra ciência é possível – manifesto por uma desaceleração das ciências. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2023.
Notas
[1] As correrias foram expedições armadas durante o auge do ciclo da borracha entre os séculos XIX e XX para incorporação forçada de mulheres e crianças aos seringais.
[2] Mauro Almeida se refere aqui às colocações no Rio Riozinho, afluente da margem direita do rio Tejo nas proximidades da atual Vila da Restauração, e que hoje se encontram bastante desmatadas em comparação aos anos 80. É uma área vizinha aos limites do território que circunscreve a história de vida dos Kuntanawa.
[3] Sobre a sazonalidade que orienta as coletas, é interessante notar que a coleta do látex de seringa é diferente da coleta de óleo da copaíba, pois enquanto a primeira é feita quando as folhas brotam, na outra é quando as folhas caem. Tais procedimentos evitam que as árvores enfraqueçam, como José Osmildo explicou.
Publicado em 27 de outubro de 2025.
* Priscila Ambrósio Moreira é bióloga em pós-doutorado no Departamento de Antropologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), como integrante do Humanimalia e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Fez mestrado em Recursos Genéticos Vegetais (UFSC) e Doutorado em Botânica (INPA) com ênfase na ecologia histórica de paisagens amazônicas. Atua também como analista ambiental em processos de demarcação de Terras Indígenas na Bacia Amazônica. É mãe do Joaquim.
Como citar: Moreira, Priscila Ambrósio. 2025. A aldeia vai virar cidade? Notas sobre o princípio da transformação no território Kuntanawa. Blog da Capivara, disponível em: https://humanimaliaufscar.net/blog-da-capivara/aldeia-vai-virar-cidade.